Meu último dia

Jerusalém, Pretório de Pilatos. Sexta-feira de Pesach.

Ainda é madrugada. Não está frio, mas a brisa é úmida e traz com ela um ar chuvoso, feito uma longa bandeira desfraldada ao vento. Este que sopra para dentro da cela se mistura com a Voz que há dias vem falando aos meus ouvidos. Às vezes sons confortantes outros pertubadores. Só havia essa Voz singular que, embora viesse da cidade, se fixava aqui, no vento, como no buraco de uma agulha se prende a ponta de um fio distante. Seu simples som antes mesmo que as palavras fizessem sentido, penetrou em mim citando estranhamente o Profeta Yeshayáhu de forma suave, porém forte, nesta sequência, susurrava frases e sumia, voltada e susurrava novamente, como a onda do mar quando se debrussa na beira da praia, naquele doce balanço vai-vém, perturbador, mas belo.

“Foi desprezado e rejeitado pelos homens.” – fazia silêncio, então voltava baixinho e ia ficando forte – “Como alguém de quem os homens escodem o rosto.” – se distanciava, me deixava esquecer e reaparecia – “Levou sobre si as nossas enfermidades.”

Foi quando Ela se silenciou como se fosse tragada pela multidão que começa gritar em uníssono e euforicamente: “Crucifique-o! Crucifique-o! Crucifique-o!”. O alvoroço se manteve contínuo até que os passos marcados desviaram minha atenção. Vinham aumentando a força na medida que se aproximavam, era a tropa de soldados romanos que entrarava no Petrório. Abriram espaço e formaram um semi-círculo no centro dando passagem aos dois soldados que traziam um homem. Fixei os olhos Nele, o reconheci, era Yeshua. Aquele homem que tanto ouvi pregar em nossa cidade, aquele homem que alguns diziam ser um profeta, outros um sacerdorte, muitos só mais um louco hebreu, alguns diziam ser o prometido HaMashiach, seus discipulos pregavam ser o próprio Deus encarnado, eu apenas o acompanhava de longe sem conseguir definir quem era, agora só um homem condenado, assim como eu. Seu rosto estava sombrio, acompanhado de um abatimento violento causado por uma profunda emoção, trazia no olhar um grande medo. Todos estavam tensos. Bruscamente foi jogado ao chão e amarrado pelos pulsos a uma coluna de meio metro de altura com as costas viradas para o alto. Os dois soldados foram até a bancada e cada um pegou uma chibata para si. Era um chicote com tiras de couro múltiplas sobre as quais eram fixadas bolinhas de chumbo e de pequenos ossos de animais. Os dois carrascos, um de cada lado começam a golpear suas costas. O tecido de sua roupa se dilacera e se rompe junto com sua pele, o sangue espirra. A cada golpe ele reagia em um sobressalto de dor, suas forças se esvaem, um suor frio lhe impregna a fronte, a cabeça gira e vem uma vertigem de náusea, calafrios lhe correm ao longo das costas.

Enquanto o massacre prosseguia, a Voz continua falar comigo, de dentro para fora, mas agora sem parar, repetidas vezes, cada vez mais forte:

- “Foi traspassado por nossas transgressões, esmagado por nossas iniqüidades.”

Estava insuportável assistir aquilo, as pálpebras dos meus olhos não puderam conter as lágrimas que vinham transbordantes. Mesmo em meio ao terror daquela cena, eu não conseguia desviar os olhos daquele homem que sofria em silêncio.

Quando já não tinham mais forças no braço para bater, desataram seus pulsos e o deixaram largado ao chão como se esquece um homem morto fora da cidade. Em volta da meia coluna tinha se formado um grande pingo de gota vermelha, com leves rabiscos nos contornos. Eram os espirros de sua vida. Suas armas escorriam sangue como se jorrassem delas próprias. Um dos soldados que assistia ao espetáculo vivo, veio até ele e o encostou à coluna de mármore, deixando-o sentado sobre sua própria poça de sangue. Em suas mãos trazia uma coroa de longos espinhos com os algozes entrelaçados em uma espécie de capacete, encaixou em sua cabeça e forçou-a para baixo. Os espinhos, mais duros que os de acácia, penetraram no seu couro cabeludo fazendo-o sangrar. Outro soldado trouxe uma túnica vermelha e cobriram suas costas, deram-lhe um cajado e o colocaram de pé no meio do petrório. O empurravam de um lado para outro perguntando:

- Não és tu o Rei dos Judeus? Não és tu o salvador da humanidade? Mostre-nos seus reinos e seremos seus súditos – se ajoelharam em reverência ao Rei dilasserado – mostre-nos tua salvação ó Bendito de Israel.

Até que tonto caiu e lá ficou deitado, sem forças de mover-se. Um dos soldados se enfureceu, tomou para si o cajado e disse:

- Um Rei miserável como você nem os bárbaros merecem.

Bateu fortemente com cajado em sua barriga, fazendo-o envergar e tocir de dor. Cuspiu em seu rosto e mandou que trouxessem algo. Então nos soltaram e nos levaram para o centro do petrório onde estava Yeshua, que de alguma forma lhe restava forças para ao menos naquele momento se manter sentado. Se mantinha calado como uma pedra, como um cordeiro levado ao matadouro.

Trouxeram a grande trave horizontal da cruz e colocaram sobre nossas costas. Era realmente pesada, tinha em média de uns cinquenta quilos. A cada momento Yeshua nos surpreendia ainda mais. Quando me perguntava o porquê Ele estava sofrendo aquilo, a Voz me respondia com os trechos da profecia do Profeta Yeshayáhu. Quando eu gritava para mim mesmo que os amaldiçoassem, ele se mantinha em silêncio, aceitando tudo aquilo. Quando achava que deveria estar morto depois de ser chicoteado brutalmente, ele se mantinha com o ar que dificilmente chegava aos seus pulmões. Quando eu achava que já não restavam mais forças em seu corpo, ele suportou os braços da cruz sobre seus ombros cobertos de chagas. Eu não compreendia.

O percurso até o Calvário era de seiscentos metros de ruas de terreno irregular e cheias de pedregulhos, pisados pelos pés da história de nosso povo que agora abria espaço para o criminoso de mãos limpas. Alguns o amaldiçoavam com ódio nos olhos, outros com amor gritavam indignados:

- Por que vocês não o deixam em paz? Não há culpa nele. Ele é o nosso Rei, nosso Messias!

Não adiantava! Yeshua caminhava descalço sobre a rua Via Dolorosa arrastando um pé após o outro, frequentemente caia sobre os joelhos, fraco de tanto flagelado. Eu logo atrás suspirava aos sustos cada vez que cambaleava. Até que caiu de peito no chão com a viga nas costas, ela escapa de suas mãos e esfola o dorso. Todos por um segundo interromperam a respiração. Estava próximo o bastante para encarar seu rosto, mas Ele não me olhava. Veio até Ele um soldado e cortou as cortas que prendiam seus pulsos ao pedaço de madeira. Ascenou levemente, quase imperceptível, só percebi em quem prendeu o olhar quando o soldado gritou para o homem negro a beira da estrada:

- Vem cá. Tome a trave. Carregue-a para o prisioneiro.

Jazia numa ilha de vazio. As suas costas e ombros tinham sido retalhados, o sangue brilhando espesso ia se coagulando. Obviamente Ele não poderia carregar aquele tosco pedaço de madeira que estava ao seu lado.

O soldado o empurrou para estrada e grunhindo disse:

- Bárbaro! Não tem pena de quem está morrendo?

Não teve escolha. Antes de colocar sobre seus ombros a condenação de Yeshua, o apoiou em seu corpo e os levantou num único impulso. Quiseram amarrar suas mãos ao madeiro, mas negou.

Chegando a Golgota fizeram com que o homem deitasse a trave no chão e mandaram que fosse embora. Parecia não ter respondido, mas ficou por ali para observar os mortos serem pendurados. Todos estavam ali. Caminhei para o poste onde seríamos colocados até que ele tampasse a luz do sol no meu rosto, deleitei minha face sobre onde seria cravado meus pés e senti meu coração pulsar cada vez mais forte como se fosse saltar para fora, abri meus os olhos e percebi que tremiam mais, minhas vestes estavam encharcadas de suor, um suor frio, um suor que gelava desespero, aspirava morte, molhava medo.

Foi quando o grito de Yeshua me chamou atenção. Os soldados caçoando disseram:

- Estas sãos as vestes do místico ordinário! Não rasgue seu imbecil! Vamos tirar na sorte por elas!

Tinham fortemente despojado a túnica que cobria suas costas, ela estava colada nas chagas e arranca-la daquele modo causou uma dor atroz, quase provocando uma síncope. Suas costas voltam a sangrar, mais ainda agora com o machucado reaberto. Ainda não era o fim!

Senti ser puxado fortemente para trás, cai com as costas nas pedras e bati a cabeça na trave contra o chão. Fiquei tonto por alguns segundos. Quando minhas vistas desembaçaram, pude ver os braços de Yeshua sendo esticados de ponta a ponta. Tiveram que fazer um pouco mais de força para colocar o braço direito no lugar certo, pois estava deslocado devido a queda. Pude ouvir o estalo do ombro voltando ao lugar e ver seu rosto se virando de dor. Amarraram novamente seus braços. Os buracos já estavam feitos para facilitar a entrada dos pregos. Então ouvi tilintar deles se aproximando. Yeshua seria o primeiro. Ele não falava nada, se mantinha em silêncio esperando que tudo acontecesse. A Voz voltou a falar:

- “Como um cordeiro foi levado para o matadouro e como uma ovelha que diante de seus tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca.”

- Inacreditável – sussurrei para mim mesmo!

Apontararam os pregos sobre seu punho e entre o segundo que virei o rosto para não ver e o som da batida certeira do martelo sobre a madeira, segurou o grito dentro da boca tão fortemente que talvez fosse possível ouvir o som de dentro da sua cabeça para fora. Talvez se tivesse soltado a voz, teria a perdido em um único berro. Seus dedos ficaram rigidamente semi-cerrados tremendo de dor. O soldado disse para o outro:

- Acertei o nervo mediano, foi lesado!

Contorci-me em agonia. A imagem e a sensação de dor brotaram da memória como um espasmo. Sei que dor é essa, cortei um dos pulsos quando criança. Foi uma dor lancinante, agudíssima, que se difundiu pelos dedos, espalhou pelos ombros e depois atingiu o cérebro. Seu nervo ainda estava em contato com o prego enferrujado. É a dor mais insuportável que o homem pode provar. Lembro-me de ter perdido a consciência, mas Yeshua não. Não gritou. Não estava inconsciente. Seu peito inchava conforme sua respiração dificil. Sabia de tudo que estava acontecendo com ele. Não praguejava.

Pregaram o outro pulso. Não se queixou. Depois pregaram um pé contra o outro e os dois contra a madeira.

Vi seu corpo subindo balançando para o poste alto fincado no chão. Assentaram a trave numa cavilha firme no poste. Enquanto era suspenso, afastando-se de mim, pude ver seu nervo esticando fortemente como uma corda de violino esticada sobre a cravelha. A cada solavanco, a cada movimento, vibrava despertando dores dilacerantes. O corpo inteiro deslocou-se para baixo quando a trave se encaixou na cavilha e toda sua pele estremeceu, os dentes começaram a bater de dor. Seu corpo era uma mascara de sangue. Sua respiração se faz pouco a pouco mais curta. O ar entra, mas não consegue mais sair. Yeshua respira com o ápice dos pulmões. Tem sede de ar: como um asmático em plena crise, seu rosto pálido pouco a pouco se torna vermelho. Yeshua é envolvido pela asfixia. Os pulmões cheios de ar não podem esvaziar-se. A fronte está impregnada de suor, os olhos saem fora de órbita. Mas lentamente com um esforço sobre-humano, Yeshua toma um ponto de apoio sobre o prego dos pés. Esforça-se a pequenos golpes, se eleva aliviando a tração dos braços. Os músculos do tórax se distendem. A respiração torna-se mais ampla e profunda, os pulmões se esvaziam e o rosto recupera a palidez inicial. Então Ele brada aos céus:

- Pai – fez uma pausa, deixou que as lágrimas escorressem, olhou para a multidão feroz e continuou - Perdoa-lhes – repetiu depois de um suspiro de dor: Perdoa-lhes, por que eles não sabem o que faz.

Nesse momento eu também tremia. Mas agora de alívio, pois sua Voz agora penetrava em mim suavemente, levemente, de forma bela, porém sem pertubação, sem assombro, sem culpa, sem acusação.

- “O castigo que nos trouxe a paz estava sobre Ele e pelas suas feridas fomos sarados.”

Soube naquela mesma hora quem Ele é e quem eu sou. Sou quem eu fui, sou o que merecia estar ali. Sou o transigente, o fora da lei, o impuro, o pecador. Soube que Ele é inocente e não precisava e nem merecia estar ali. Mas acima de tudo isso, soube que Ele me amava e então estava ali. Por mim!

Mas a minoria ali percebeu e sentiu isso. Os guardas dividiram suas roupas, tirando sortes. As autoridades ridicularizavam dizendo:

- Salvou os outros. Salve-se a si mesmo, se é o HaMashiach de Elohim, o Escolhido.

Então lhe trouxeram vinagre, mas Ele rejeitou. Colocaram uma inscrição sobre sua cabeça dizendo:

- ESTE É O REI DOS JUDEUS

E os soldados diziam lá debaixo:

- Se você é o Rei dos judeus, salve-se a si mesmo.

Para minha surpresa, meu irmão também começou a escarnacer:

- Você não é o HaMashiach? Salve-se a si mesmo e a nós!

Foi demais para mim, não pude conter, já tinha aguentado até ali. Eu o repreendi, dizendo:

- Você não teme a Hashem nem estando sob a mesma sentença? Nós estamos sendo punidos com justiça, porque estamos recebendo o que os nossos atos merecem. Mas este homem não cometeu nenhum mal!

Não sabia se seria ouvido, nem esperava ser atendido, mas eu queria estar com aquele homem e isso foi mais forte do que tudo em mim. Então humildemente me dirigi a Ele e disse:

- Yeshua, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino.

Pela primeira vez eu o vi sorrindo. E Ele respondeu:

- Eu lhe garanto: Hoje mesmo estaremos juntos no paraíso.

Nada mais importava para mim. Nada que eu ouvi em toda minha vida tinha me dado tanta paz. Já podia morrer. Morrer para viver eternamente.

Já era quase três horas da tarde e desde o meio dia que já não era mais uma simples brisa de chuva que soprava para nós. As densas nuvens cobriam a terra. O sol já não brilhava mais sobre nós. A temperatura diminui. Senti frio.

Então pela última vez o processo se repete. Sua respiração se faz mais curta. O ar que entra não consegue mais sair. Ele respira com o ápice dos pulmões. Os músculos do tórax se distendem. A respiração torna-se mais ampla e profunda, os pulmões se esvaziam e o rosto recupera a palidez inicial. Todas as suas dores, a sede, as cãibras, a asfixia, o latejar dos nervos medianos, lhe arrancam um lamento:

- Elí, Elí, lamá sabactâni? (Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?)

Em seguida num grande brado diz:

- Aba, nas tuas mãos entrego o meu espírito.

E morre.

Este foi meu último dia. Eu também morri. Logo depois disso os guardas vieram até mim com um pedaço de madeira e num único golpe quebraram meus joelhos. Não tive chance de gritar de dor porque meu corpo se apoiou no meu diafragma e morri asfixiado. Minha morte foi merecida, mas não poderia pagar o preço de meus pecados. Só Ele poderia fazê-lo. Não faça dessa morte, que trouxe nova vida a todos nós, uma morte sem nexo. Ele pereceu, mas como o amanhã meu Cristo ressurgiu e hoje vivo está.
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